segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Sobreviventes: como marcas desativadas há décadas continuam vivas na sua memória?

Embora muitas caiam no esquecimento, um número considerável resiste ao fim das organizações que representavam e se mantêm vivas na memória do público




Centenas de marcas atreladas a empresas que fecharam as portas (ou foram incorporadas por outras) desapareceram dos rótulos, embalagens, fachadas, outdoors e afins. Entretanto, apesar de aparentemente mortas, muitas delas conseguem sobreviver numa espécie de limbo do mercado. Algumas acabam mesmo esquecidas quando seu último cliente vivo falece. Mas tem aqueles que não fazem completamente a passagem para o mundo dos mortos e, em alguns casos, arriscam até uma segunda chance.

A Rede Manchete de televisão, por exemplo, faliu em 1999, cedendo espaço à RedeTV!, que passou a deter a concessão de transmissão do canal e inaugurou uma programação totalmente nova. Mas, mesmo com a aposentadoria oficial da marca, a emissora fundada por Adolpho Bloch sobreviveu na memória afetiva de boa parte dos antigos telespectadores.

Fãs da emissora ajudam a atualizar diariamente o site www.redemanchete.net, espaço colaborativo criado por um também fã, Diogo Montano, pouco depois da falência. O espaço reúne hoje parcela considerável do conteúdo da antiga rede – vindo dos acervos pessoais de telespectadores de várias partes do Brasil, mantendo a velha programação bastante viva. “Embora afetada pelo fim do negócio, a marca só deixará de existir quando ninguém mais se lembrar dela”, explica Flávio Ferrari, especialista em Inteligência Competitiva, Marketing e Comunicação.

Ferrari destaca que é importante separar organização e marca, algo que, enquanto ambas estão ativas, é praticamente indissociável. Com o fim de um negócio, a separação se torna mais evidente e, na maioria dos casos, a morte deste não acarreta a definitive extinção da percepção de valores que o público tem sobre ele. “Vamos tomar o exemplo da Gradiente (que prepara sua volta às prateleiras neste ano). Imagine que você entre hoje numa loja e encontre dois aparelhos de som similares pelo mesmo preço, um com a marca Gradiente (conhecida) e outro com a marca Pluft (totalmente desconhecida para você). Se sua experiência passada com a Gradiente foi positiva ou neutra, você tenderá a escolher seu produto”, explica Ferrari.

O especialista, no entanto, faz uma ressalva. “Obviamente, mantidas as mesmas condições de similaridade (preço-produto), marcas ativas no mercado (LG, Samsung, Sony) tenderiam a levar vantagem sobre a Gradiente num primeiro momento, já que pesariam o distanciamento no tempo e a associação com a tecnologia anacrônica”, afirma.

Marca eterna

A empresa chegou ao fundo do poço, entrou num beco sem saída, ficou de mãos atadas. Afundada em dívidas, não tem receitas suficientes nem crédito no mercado. Não consegue mais honrar compromissos. Não houve outra solução: portas fechadas. Mesmo assim, anos depois, as pessoas ainda se lembram dela. O caso do Banco Nacional é muito parecido com o descrito acima.

Nos anos 1990, a organização passou por uma grave crise. Já sob intervenção do Banco Central, acabou falindo em 1995. Seus ativos foram assumidos pelo Unibanco (hoje Itaú/Unibanco) e os passivos pelo Banco Central. Seu logotipo, entretanto, ficará para sempre no boné de Ayrton Senna, ídolo brasileiro da Fórmula 1 que patrocinava. Fortemente associada a um dos esportistas mais admirados do Brasil, a marca Banco Nacional construiu uma reputação quase impecável e, de tão vinculada, confundiu-se com o próprio garoto-propaganda, integrando sua imagem pública e eternizando-se juntamente com ele na memória do povo brasileiro.

Um bem intangível (e valioso)

Como explica o professor Marcelo Boschi, da ESPM/RJ, “existem muitos casos relatados na bibliografia sobre marcas de empresas em processo falimentar que, mesmo após o fechamento de suas atividades, conseguem negociar sua marca”. A cadeia de lojas de departamento Mesbla, principal companhia do tipo no Brasil antes da expansão das concorrentes internacionais, é um caso típico do que diz o professor Boschi. Em 1997, após mergulhar em uma crise que levou à demissão de milhares de funcionários e ao fechamento de diversas unidades, ela pediu concordata. Mas, mesmo com todas as dificuldades, sua reputação construída ao longo de 85 anos garantiu a venda de seu controle acionário por R$ 600 milhões.

“A questão central é tratá-la (a marca) como um ativo, ou seja, algo que tem valor e consequentemente é passível de ser comprada e vendida, em qualquer fase de sua vida”, afirma Marcelo Boschi.

Novos tempos

Hoje vivemos uma fase de reconfiguração dos modelos produtivos mundiais e, apesar das várias dúvidas existentes, nada é tão certo quanto o fato de que as mudanças nos mercados estão se dando numa velocidade muito rápida. Nesse sentido, as empresas têm precisado desenvolver cada vez mais suas capacidades camaleônicas.

A Nokia, uma das principais empresas de telecomunicações móveis do mundo, foi fundada em
1865 como uma fábrica de papel, e produziu botas de borracha e armários de madeira antes de
fabricar celulares e bem antes de ser vendida para a Microsoft. A Samsung produziu açúcar e vendeu seguros antes de se tornar uma gigante da tecnologia. Como uma marca sobrevive a mudanças tão drásticas?

“A volatilidade dos mercados requer das empresas uma significativa capacidade de adaptação. Atualmente a estratégia mais reconhecida é não atrelar a marca a atributos específicos dos produtos, dando-lhe uma característica mais genérica”, explica Marcelo Boschi.

“A Olivetti é perfeita para exemplificar esta questão. Quando perguntamos sobre o que a marca representa, a resposta é imediata: máquina de escrever”, complementa o professor, citando o caso da companhia que não conseguiu continuar forte no mercado depois da extinção das máquinas de datilografia.

Em momentos assim, é indispensável saber captar os sinais do mercado. “Quando a gente tem uma perspectiva de crise, a postura proativa é muito importante, porque se eu ajo antes me previno melhor”, explica o professor Leonardo Araújo, co-autor do livro Empresas proativas. “A marca Olivetti certamente tinha elasticidade suficiente para acomodar confortavelmente outros produtos, desenvolvidos a partir das novas tecnologias disponibilizadas. Mas a empresa Olivetti estava, provavelmente, muito ocupada tentando produzir melhores máquinas de escrever e não soube aproveitar a oportunidade, sendo superada por outros competidores, alguns sem tradição no mercado. Marcas que começaram do zero, como Zebra ou Epson, ou que precisaram abusar de sua elasticidade para incorporar um novo mercado, como a Canon, abocanharam boa parte do mercado que poderia ter sido da Olivetti”, afirma Flávio Ferrari.

Fusões

Quando grandes empresas se fundem, há dois caminhos comuns. Um deles é a manutenção das duas
marcas, como foi o caso da Semp-Toshiba no Brasil, por exemplo. Outro é a utilização das duas por um tempo e, em seguida, a unificação em torno da mais forte, como houve com o Banco Real e o Santander, quando prevaleceu a última. Nessas situações, o que acontece com o legado da marca que deixa de ser utilizada? “Não acredito que a herança emocional consiga ser passada para outra, a não ser que exista uma ligação extremamente emocional explícita, como no caso das marcas políticas (nesse caso, as marcas são políticos ou partidos)”, afirma Rique Nitzsche, professor da ESPM/RJ, especialista em Design thinking.

Às vezes, entretanto, a estratégia é justamente não absorver a impressão da marca aposentada. “A LG abandonou a marca Goldstar (percebida como de baixa qualidade) quando resolveu competir com empresas de ponta do setor eletro-eletrônico”, lembra Flávio Ferrari. Nesses casos, a coisa complica: provavelmente é mesmo o fim.



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