O artigo apresenta a discussão do caráter dinâmico dos
riscos, que deve ser considerado na sua gestão
Com os avanços do acesso a internet pela população,
associado às possibilidades advindas de equipamentos portáteis, a criatividade
humana nos brindou com um sem número de aplicativos, alguns destes voltados
para minimizar um dos grandes problemas da vida moderna: a violência urbana.
Dentre esses aplicativos, chamou a atenção um que teve
recente destaque, desenvolvido por jovens do ensolarado Estado do Ceará, que
amarga índices de violência elevados na última década. No aplicativo, as
vitimas de crimes utilizam o celular ou qualquer outro dispositivo móvel (se
ele não foi roubado), para quase em tempo real alimentar esse sistema com a
hora e o local do crime.
Dessa forma, de maneira colaborativa, o aplicativo cria um
mapa atualizado das ocorrências de crimes em dado território, o que nos fornece
informações sobre os riscos que corremos, sacralizando alguns lugares como
seguros e demonizando outros como perigosos, servindo de referência segura aos
noctívagos incautos e as moças transeuntes. São perigosos agora por uma questão
estatística e não por serem escuros ou próximos aos lugares ditos “mal
frequentados”, constituindo uma nova lógica de percepção da realidade.
Essa salutar ideia de levantamento dinâmico de informações
com vistas a fornecer elementos para a mensuração dos riscos, consoante com os
recentes conceitos de “big data”, é alvissareira e combina a organização em
rede de uma comunidade com a gestão de riscos. Entretanto, essa abordagem não
dá conta de todas as questões e inspira algumas precauções.
Lidamos com sistemas de atores ativos, “players” racionais,
que reagem diante de novas informações disponibilizadas. Assim, os meliantes
podem acessar o aplicativo e buscar os locais qualificados como seguros, para
encontrar ali vítimas desprotegidas e tranquilas na sua sensação de segurança.
O local seguro vira uma armadilha...
Similar princípio ocorre quando ouvimos pelo rádio
determinada informação sobre o trânsito e mudamos de direção. Acompanhados
pelos outros ouvintes da mesma rádio, adotamos um caminho alternativo, que
seguido por todos se converte de solução miraculosa para outro engarrafamento.
Deparamos-nos assim com o conceito clássico do mercado de ações da “informação
privilegiada”, no chamado efeito “manada” ou “cardume”, aliás, reação instintiva
para buscar proteção. Quem sabe o que ninguém sabe tem sempre uma vantagem
competitiva. Por isso temos dificuldade em descobrir dos órgãos de segurança,
por exemplo, a marca de automóvel mais furtado em uma determinada região, ainda
que com esses aplicativos essas e outras informações serão em breve
disponibilizadas, para todos!
O risco é dinâmico. Transforma-se diante desse jogo de
atores, que muda a sua disposição em função do próprio risco divulgado. O que é
consensual hoje como perigoso pode já não ser amanhã. É um jogo de interesses
construído no cotidiano.
Os centros de governança das organizações necessitam contar
com mecanismos que se dediquem a estudar o comportamento dos riscos em um
determinado ambiente corporativo, buscando os ganhos da antecipação. A teoria
dos jogos traz o cabedal teórico dessas interações entre dois oponentes
racionais, como no conhecido caso do dilema do prisioneiro, em que os objetivos
da contraparte são conhecidos, mas para além de modelagens matemáticas, faz-se
necessário enxergar a realidade sob esse viés.
E a gestão pública? O que tem a ver com isso? Muito...
Mapeamos riscos, mesmo que inconscientemente, em nossas atividades cotidianas
de gestão. Protegemos o patrimônio, resguardamos os objetivos organizacionais,
velamos pela imagem da casa. E tudo isso de acordo com as informações que nos
permitiram perceber os riscos daquele ambiente.
O problema reside na fossilização. Assim como o banco de praça
pintado, com a placa de “não sentar”, vai se tornando sagrado e já não sentamos
nele sem saber nem o porquê. Prendemos-nos, de forma atávica, aos riscos
percebidos em nossa organização, sem reciclar a visão, investindo em controles
já sem necessidade e deixando passar situações que redundam em prejuízo,
gerando o choro sob o leite derramado. Grande perigo a gestão traz o “olhar que
se acostuma”.
Percebe-se, no entanto, que alguns riscos são mais dinâmicos
que outros. Situações que envolvem objetos inanimados, como a prevenção de
incêndios e de acidentes domésticos possibilita uma aferição mais estática do
risco. Navios de guerra tem no canto, ao lado da porta de uma sala, o “kill
card”, um check-list com as situações geradoras de risco de sinistro daquele
compartimento, que pouco mudam, se mantidas aquelas condições descritas.
Entretanto, na gestão pública lidamos com situações mais
voláteis. A corrupção, o desvio de recursos, envolvem “players” racionais, que
tem muito a ganhar com a atuação irregular e que buscam maximizar o seu ganho e
minimizar a sua chance de ser detectado, e para isso, analisam o movimento de
instâncias reguladoras, sua forma de agir e fragilidades, construindo a sua
estratégia de modo a atuar nas brechas dos sistemas de controle.
As fontes de risco, ou seja, elementos que geram
probabilidades de situações que interfiram nos objetivos de nossa organização,
pela sua atuação racional, fazem do risco algo dinâmico. As alterações do
ambiente, ainda que motivadas por fatores aleatórios, também trazem dinamismo
aos riscos, mas o complicador das fontes racionais é a sua adaptabilidade
intencional aos mecanismos de regulação, o que é um fator potencializador.
Diante dessas constatações, na gestão devemos ter em mente
que em relação aos riscos da malversação de recursos, a repetição e a
divulgação pode nos levar ao fracasso. A confiança em nossos mecanismos de
fiscalização deve levar em conta a adaptação do meio, motivado as vezes por
régia recompensa. Muitos gestores confiam nas suas verificações de processos
seguidos por um critério único e aplicado a todos, o que traz em si a
probabilidade de estar albergando ações danosas e não percebidas, na nefasta
sensação de segurança.
Frases como “Isso nunca aconteceu” ou “Sempre foi assim”,
fragilizam a governança da gestão, que deve estar atenta às ameaças internas e
do ambiente, evitando as fossilizações. Obviamente, o extremo da perseguição
das mutações do risco nos leva a gastar mais recursos do que necessário com o
controle. É preciso ter consciência dos riscos a que estamos expostos, de um
modo geral, e que eles mudam, ao sabor do vento e das vontades. Considerar isso
em nossos planos é salutar, mas sem ceder à tentação de tentar controlar tudo e
todos.
Saudemos, com alegria, os novos aplicativos que tabulam e
mapeiam informações em tempo real. Serão instrumentos valiosos, que vão mudar
nosso modo de vida, a nossa relação com o Estado e a própria gestão deste.
Entretanto, lembremos que esse jogo tem dois lados, e que a informação é só um
ingrediente dessa guerra.
Fonte: Administradores
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