segunda-feira, 23 de junho de 2014

Modo de produção wiki: Tesla faz isso certo

Abertura das patentes para qualquer desenvolvedor mostra o que Tappscott e Williams já martelam há tempos: não importa qual o seu negócio, ele será compartilhado




O que a indústria automotiva faz para proteger os seus segredos não é segredo para ninguém. Desde o traço do design dos veículos até o pistão do motor, tudo é patenteado, considerado vantagem competitiva sobre as montadoras concorrentes. Assim como em qualquer indústria -- dos smartphones às máquinas pesadas -- , imitou ou fez parecido, processos bilionários. Por fora dos muros desse modelo de negócios encastelado da velha indústria dos séculos 19 e 20, uma nova tendência se consolida. Não tão nova, é certo, mas que ganha corpo com mais empresas aderindo e já forma um cerco poderoso, que seguramente irá reduzir ou minar o modelo centralizador.

As velhas teorias da Administração -- taylorismo, fordismo, toyotismo, etc -- ainda são despejadas à exaustão nos cursos universitários (não só de Administração). Penso que é hora de as escolas e empresas prestarem mais atenção à wikieconomia. Já existe uma farta fundamentação teórica sobre o assunto. Entre os principais autores, destaco Don Tapscott e Anthony D. Williams, autores do livro "Wikinomics: como a colaboração em massa pode mudar o seu negócio". A ideia básica do título, cuja primeira edição é de 2006, é a seguinte: futuramente, os modelos de negócios não serão baseados em multinacionais que contam com uma arquitetura radial, com um escritório central opera os níveis estratégicos e as subsidiárias operam e produzem. "[...] a velha e monolítica multinacional que cria valor de maneira hierárquica e fechada está morta", decretam os autores.

"Essa abordagem de mercado a mercado da organização da produção não faz mais sentido em uma era global. Os silos nacionais deram origem a burocracias inchadas e caras que utilizavam processos ineficientes, incompatíveis e, muitas vezes, redundantes para a produção e comercialização local de produtos". (p. 263)

A Wikieconomia

Qual a tendência vislumbrada, então?

"Na verdade, a cada dia estamos mais próximos de uma realidade mais colaborativa, à medida que projetamos e desenvolvemos bens físicos em redes sempre mais descentralizadas de indivíduos e empresas que usam métodos que cada vez mais se espelham naqueles usados para a produção de bens intangíveis, como o conhecimento. Logo, os métodos colaborativos dos programadores de software e código aberto serão tão viáveis para a produção de carros e aviões quanto para a criação de softwares e enciclopédias" (p. 262)

Basicamente, o que começou com o sistema operacional Gnu e o kernel Linux, passou pela Wikipedia e agora permeia a monolítica indústria de carros. Nesta semana, a Tesla Motors -- não por acaso batizada em homenagem ao cientista gênio Nikola Tesla, que nunca fez questão por uma patente -- derrubou as paredes do conhecimento por trás de sua tecnologia. Isso nas palavras do seu fundador, Elon Musk.

"Ontem, existia uma parede de patentes da Tesla no escritório de Palo Alto. Não é mais o caso. Elas foram removidas, no espírito do movimento open source, para o avanço da tecnologia de veículos elétricos", informa o CEO, em uma postagem no blog oficial da companhia. É a confirmação da previsão feita em 2006, por Tapscott e Williams. É também o prenúncio de uma mudança profunda na cadeia produtiva dos carros (as petrolíferas podem dançar nessa jogada). Agora, eu e você podemos pegar as patentes, abrir uma pequena oficina e, com um investimento inicial, criar carros elétricos com tecnologia da Tesla Motors. Se o projeto não for adequado às necessidades, pode ser alterado.

Santos Dumont fazia isso

Isso é fantástico, muito mais do que parece. Poucos brasileiros lembram, mas Santos Dumont (parece que gênios tupiniquins nunca contam) criou o Demoiselle no começo do século 20 justamente sob essa premissa: que as patentes pudessem ser usadas por qualquer pessoa para, desta maneira, popularizar a aviação. Em tempo: os irmãos Wright, que criaram a primeira máquina mais pesada do que o ar capaz de voar, correram para o escritório de patentes, à la Thomas Edison. Quarenta oficinas trabalharam com as especificações do Demoiselle e produziram modelos em série, enquanto Santos Dumont criava modelos cada vez melhores. Os irmãos Wright esperaram ganhar algum dinheiro com as patentes do controle aerodinâmico. Quem é o pai da aviação?



A teoria se consolida

O surpreendente é que a tendência do modo de produção "wiki" -- ou, como preferem os autores, o "chão de fábrica global" -- só tenha ressurgido agora. Os quatro princípios da Wikieconomia -- a saber, abertura, peering, compartilhamento e ação global -- finalmente estão sendo adotados por indústrias tradicionais. O crowdsourcing está deixando o campo experimental da internet para ganhar o mundo físico. A inteligência coletiva, pregada por Pierre Lévy desde a década de 80, toma forma. Produtos inovadores são financiados a cada dia em sites como Kickstarter e Catarse por milhares de pessoas que nunca se viram.

Tapscott e Williams citam o caso de uma mineradora no início do livro Wikinomics. A canadense Goldcorp Inc estava diante de uma crise: greves, dívidas, alto custo de produção, mercado desfavorável e o esgotamento das minas de ouro. O CEO Rob McEwen deu US$ 10 milhões para os geólogos da companhia e despachou todos para procurar novas reservas. Foi prospectado ouro suficiente, trinta vezes superior à produção corrente da Goldcorp. Mas ninguém sabia a localização exata nem detalhes técnicos necessários para dar início à exploração. Ou seja, de volta à estaca zero.

A decisão foi radical. McEwen mandou reunir todos os estudos geológicos e dados da empresa arquivados desde 1948, antes mesmo de sua abertura, e disponibilizar tudo para o público. O código foi aberto, e ele esperava que especialistas de fora da empresa apresentassem suas contribuições para que o ouro fosse encontrado. Deu certo. Conforme avalia McEwens, o sigilo dos dados era algo unânime na indústria da geologia: "estávamos atacando uma premissa fundamental", disse. Não fosse isso, hoje não existiria mais a Goldcorp. Hoje, o canadense tem sua própria mineradora, a McEwen Mining.

Um grande passo para a energia limpa

Outro aspecto merece ser relevado: um engenheiro no interior da Paraíba, minha terra linda de inselbergs, pode começar a fabricar carros com tecnologia Tesla Motors movidos a eletricidade a um preço bem abaixo do mercado, conforme as necessidades locais (pick-ups, digamos, já que a atividade predominante é a agropecuária). Carros seguros, baratos e que não precisam de gasolina para rodar. Ao mesmo tempo, outro empresário no Mato Grosso do Sul cria uma solução para motores movidos a eletricidade, com melhorias em relação ao projeto original da Tesla em termos de potência e rendimento.

"A Tesla Motors foi criada para acelerar o advento do transporte sustentável. Se nós criarmos uma passagem para a criação de veículos elétricos convincentes, mas deixarmos minas terrestres de propriedade intelectual atrás de nós para inibir os outros, estaremos agindo de maneira contrária a esse objetivo. A Tesla não irá iniciar brigas judiciais por patentes contra ninguém que, em boa fé, quiser usar nossa tecnologia".

Essa declaração pode confirmar outra feita pelo cientista gênio homônimo. "Deixe que o futuro diga a verdade, e avalie cada um de acordo com seu trabalho e realizações. O presente é deles. O futuro, pelo qual tenho trabalhado, é meu", disse, à época, Nikola Tesla, em referência a Thomas Edison. O cientista

O futuro

Em 10 anos, já existem cerca de 100 pequenas fábricas no Brasil montando carros elétricos. Se a indústria automobilística ainda não tiver percebido a tendência e aberto suas patentes, as vendas vão começar a afundar, junto com o preconceito contra carros elétricos. O faturamento também. Nos postos, há uma pequena fila para recarregar a bateria dos carros, enquanto a bomba de gasolina ainda aguarda o primeiro cliente do dia.

A essa altura, pesquisadores das universidades já desenvolveram diversos projetos para a melhoria da tecnologia, já que não precisaram pagar nada para a empresa ceder as patentes. Com o aumento da demanda, o Brasil precisaria diversificar e ampliar as fontes sustentáveis de produção de energia -- incluindo solar, no meu Nordeste, onde o sol torra os cumes dos inselbergs das 5 da manhã às 6 da noite.

Quero acreditar nesse futuro.



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