Texto de brasileiro que vive na Holanda, publicado há mais
ou menos um ano, toca em ponto sensível da sociedade brasileira
Por mais modernos que queiramos parecer, nós brasileiros
somos um povo conservador. Temos uma alma aristocrática que não exige corpo
aristocrático para se incorporar. Da faxineira à socialite, do gari ao magnata,
não é difícil encontrar quem sonhe ter (ou tenha) um (ou mais de um) empregado
em tempo integral a seu dispor, para servir e cumprir as tarefas desagradáveis.
Ter bens somente para ter e dizer que tem é normal. Ficar com o nome sujo no
mercado para bancar uma vida que não pode pagar - mas impressiona no Instagram
- também.
De tão cristalizada que essa visão está em nossa cultura, é
difícil isso não soar como algo normal. Mas eu acredito, sinceramente, que
seríamos uma sociedade melhor se executivos lavassem seus próprios banheiros e
porteiros não precisassem olhar os moradores do condomínio de luxo de baixo
para cima.
Lendo coisas pela internet, encontrei um texto escrito por
um brasileiro que mora na Holanda e publicado em seu blog, em janeiro de 2013,
há cerca de um ano. Ele fala sobre isso e achei interessante compartilhar aqui
com vocês.
Da relação direta entre ter de limpar seu banheiro você
mesmo e poder abrir sem medo um Mac Book no ônibus
Por Daniel Duclos
(Texto publicado sob a licença Creative-Commons/Não
Comercial/ Atribuição/ Não derivativa 3.0)
A sociedade holandesa tem dois pilares muito claros:
liberdade de expressão e igualdade. Claro, quando a teoria entra em prática,
vários problemas acontecem, e há censura, e há desigualdade, em alguma medida,
mas esses ideais servem como norte na bússola social holandesa.
Um porteiro aqui na Holanda não se acha inferior a um
gerente. Um instalador de cortinas tem tanto valor quanto um professor doutor.
Todos trabalham, levam suas vidas, e uma profissão é tão digna quanto outra.
Fora do expediente, nada impede de sentarem-se todos no mesmo bar e tomarem
suas Heinekens juntos. Ninguém olha pra baixo e ninguém olha por cima. A
profissão não define o valor da pessoa – trabalho honesto e duro é trabalho
honesto e duro, seja cavando fossas na rua, seja digitando numa planilha em um
escritório com ar condicionado. Um precisa do outro e todos dependem de todos.
Claro que profissões mais especializadas pagam mais. A questão não é essa. A
questão é “você ganhar mais porque tem uma profissão especializada não te torna
melhor que ninguém”.
Profissões especializadas pagam mais, mas não muito mais.
Igualdade social significa menor distância social: todos se encontram no meio.
Não há muito baixo, mas também não há muito alto. Um lixeiro não ganha muito
menos do que um analista de sistemas. O salário mínimo é de 1300 euros/mês. Um
bom salário de profissão especializada, é uns 3500, 4000 euros/mês. E ganhar
mais do que alguém não torna o alguém teu subalterno: o porteiro não toma
ordens de você só porque você é gerente de RH. Aliás, ordens são muito mal
vistas. Chegar dando ordens abreviará seu comando. Todos ali estão em um time,
do qual você faz parte tanto quanto os outros (mesmo que seu trabalho dentro do
time seja de tomar decisões).
Esses conceitos são basicamente inversos aos conceitos da
sociedade brasileira, fundada na profunda desigualdade. Entre brasileiros que
aqui vêm para trabalhar e morar é comum – há exceções - estranharem serem
olhados no nível dos olhos por todos – chefe não te olha de cima, o garçom não
te olha de baixo. Quando dão ordens ou ignoram socialmente quem tem profissão
menos especializadas do que a sua, ficam confusos ao encontrar de volta
hostilidade em vez de subserviência. Ficam ainda mais confusos quando o chefe
não dá ordens – o que fazer, agora?
Os salários pagos para profissão especializada no Brasil
conseguem tranquilamente contratar ao menos uma faxineira diarista, quando não
uma empregada full time. Os salários pagos à mesma profissão aqui não são
suficientes pra esse luxo, e é preciso limpar o banheiro sem ajuda – e mesmo
que pague (bem mais do que pagaria no Brasil) a um ajudante, ele não ficará o
dia todo a te seguir limpando cada poerinha sua, servindo cafézinho. Eles vêm,
dão uma ajeitada e vão-se a cuidar de suas vidas fora do trabalho, tanto quanto
você. De repente, a ficha do que realmente significa igualdade cai: todos se
encontram no meio, e pra quem estava no Brasil na parte de cima, encontrar-se
no meio quer dizer descer de um pedestal que julgavam direito inquestionável
(seja porque “estudaram mais” ou “meu pai trabalhou duro e saiu do nada” ou
qualquer outra justificativa pra desigualdade).
Porém, a igualdade social holandesa tem um outro efeito que
é muito atraente pra quem vem da sociedade profundamente desigual do Brasil: a
relativa segurança. É inquestionável que a sociedade holandesa é menos violenta
do que a brasileira. Claro que aqui há violência – pessoas são assassinadas, há
roubos. Estou fazendo uma comparação, e menos violenta não quer dizer “não
violenta”.
O curioso é que aqueles brasileiros que queixam-se
amargamente de limpar o próprio banheiro, elogiam incansavelmente a
possibilidade de andar à noite sem medo pelas ruas, sem enxergar a relação
entre as duas coisas. Violência social não é fruto de pobreza. Violência social
é fruto de desigualdade social. A sociedade holandesa é relativamente pacífica
não porque é rica, não porque é “primeiro mundo”, não porque os holandeses
tenham alguma superioridade moral, cultural ou genética sobre os brasileiros,
mas porque a sociedade deles tem pouca desigualdade. Há uma relação direta
entre a classe média holandesa limpar seu próprio banheiro e poder abrir um Mac
Book de 1400 euros no ônibus sem medo.
Eu, pessoalmente, acho excelente os dois efeitos. Primeiro
porque acredito firmemente que a profissão de alguém não tem qualquer relação
com o valor pessoal. O fato de ter “estudado mais”, ter doutorado, ou gerenciar
uma equipe não te torna pessoalmente melhor que ninguém, sinto muito. Não
enxergo a superioridade moral de um trabalho honesto sobre outro, não importa
qual seja. Por trabalho honesto não quero dizer “dentro da lei” - não considero
honesto matar, roubar, espalhar veneno, explorar ingenuidade alheia, espalhar
ódio e mentira, não me importa se seja legalizado ou não. O quanto você estudou
pode te dar direito a um salário maior – mas não te torna superior a quem não
tenha estudado (por opção, ou por falta dela). Quem seu pai é ou foi não quer
dizer nada sobre quem você é. E nada, meu amigo, nada te dá o direito de ser
cuzão. Um doutor que é arrogante e desonesto tem menos valor do que qualquer
garçom que trata direito as pessoas e não trapaceia ninguém. Profissão não tem
relação com valor pessoal.
Não gosto mais do que qualquer um de limpar banheiro.
Ninguém gosta – nem as faxineiras no Brasil, obviamente. Também não gosto de ir
ao médico fazer exames. Mas é parte da vida, e um preço que pago pela saúde.
Limpar o banheiro é um preço a pagar pela saúde social. E um preço que acho
bastante barato, na verdade.
PS. Ultimamente vem surgindo na sociedade holandesa um certo
tipo particular de desigualdade, e esse crescimento de desigualdade tem sido
acompanhado, previsivelmente, de um aumento respectivo e equivalente de
violência social. A questão dos imigrantes islâmicos e seus descendentes é
complexa, e ainda estou estudando sobre o assunto.
UPDATE: Muita gente tem lido este post como uma idealização
da Holanda como um lugar paradisíaco. Nada mais longe da verdade. A Holanda não
é nenhum paraíso e tem diversos problemas, muitos dos quais eu sinto na pele
diariamente. O que pretendo fazer aqui é dizer duas coisas: a origem da
violência no Brasil é a desigualdade social e 2, apesar da violência que gera,
muita gente gosta dessa desigualdade e fica infeliz quando ela diminui, porque
dela se beneficia e não enxerga a ligação desigualdade-violência. Por fim: esse
post não é sobre a Holanda. A Holanda estar aqui é casual. Esse post é sobre o
Brasil, minha pátria mãe.
Fonte: Administradores
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