terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A banalização do nada

Todos estão fazendo seus trabalhos e desempenhando suas tarefas da melhor forma possível. Todos estão certos e dormem bem à noite. Mas nos levando à paralisia




A filósofa Hannah Arendt cunhou o termo “banalização do mal” após assistir ao julgamento do líder nazista Adolf Eichmann. O fato que chamou sua atenção – e mereceu um livro inteiro sobre o tema – é que Hannah não achou que Eichmann era particularmente inteligente, malvado ou parecido com alguma daquelas imagens de vilão de filme de terror que todos estamos acostumados a imaginar. O que a autora observou foi o distanciamento com que o oficial participou da execução de milhões de prisioneiros.

O planejamento e realização das execuções tinha um caráter bastante burocrático. Dessa forma, os envolvidos não se viam como essencialmente maus, apenas estavam fazendo seu trabalho. Sem pretensões de querer resumir todo o trabalho da autora, o foco dela é na relativa "normalidade" com que tudo era feito. As pessoas faziam parte de uma grande organização e podiam dormir à noite dizendo a si mesmas que estavam apenas fazendo seu trabalho.

Se pensarmos sobre o assunto, a normalidade é muito mais assustadora que o desejo consciente de fazer mal. Uma vez que as pessoas começam a se conformar com a forma como as coisas são feitas, o sistema começa a andar por conta própria sem precisar de grandes vilões espalhados por todo o canto.

Quero pegar emprestado esse termo e propor o meu próprio para algo que tenho visto se espalhar pelo nosso país: “a banalização do nada”.

Frequentemente vemos discussões políticas, os partidários de um ou outro político se enfrentam na mídia e atraem os holofotes. Minha maior preocupação não é com esses grandes movimentos que ocorrem em Brasília, mas com milhares, ou milhões de pequenos acontecimentos que acontecem no dia a dia, que acabam criando todo um sistema que incentiva, pela falta de um nome melhor, a banalização do nada.

É quando um empresário reclama que não aguenta mais ver as regras do jogo mudarem todo dia. Quando um pequeno empreendedor me diz que não aguenta mais ser processado, apesar de tentar fazer tudo certo, quando um advogado fala que a indústria do processo trabalhista e a indústria do dano moral estão cada vez maiores. Quando alguém tem que pagar uma multa por quebrar uma regra que mal entende. Pessoas reclamando de fiscalizações e normas que parecem arbitrárias e sem sentido. Em todas essas situações, estamos vendo exemplos da banalização do nada.

Sim, eu sei, caro leitor, é preciso ter regras. Elas precisam ser seguidas. Algum jurista certamente vai me dizer que as pessoas têm direito de contestar as coisas e a justiça serve para isso. Ótimo. Mas em algum lugar precisamos pensar nas consequências e custos disso tudo. Precisamos traçar um limite.

A partir do momento em que o número de regras e punições parece tão grande e arbitrário, quando vemos pessoas tentando ganhar a vida se sentindo desmotivadas e prejudicadas, quando vemos empresários massacrados pela máquina pública, quando vemos cada vez mais dificuldade das pessoas entenderem o sistema em que vivem, é hora de perguntar se não estamos indo longe demais.

O resultado? Nada. Um sentimento de impotência e paralização cada vez maiores. Vejo, continuamente, empreendedores e profissionais se sentindo massacrados e desmotivados. Pessoas pensando em desistir. Reclamações de que não há nada a ser feito.

Nada.

Quando os fiscais estão corretos, com as leis sendo seguidas à risca, para quem podemos reclamar? Todos estão fazendo seus trabalhos e desempenhando suas tarefas da melhor forma possível. Todos estão certos e dormem bem à noite.

E o quadro geral?

O risco é criarmos monstros burocráticos como o descrito por Hannah Arendt. Felizmente, não temos as inclinações destrutivas dos nazistas. Temos, no entanto, uma crescente tendência à inação, à paralisação e à falta de motivação que pode ser vista por todos os cantos da nossa economia.

É preciso pensar nas consequências de tudo isso. As ações individuais, de milhares de pessoas apenas cumprindo regras e fazendo seus trabalhos, criam resultados muito mais complexos e maiores do que qualquer membro individual consegue enxergar.

É preciso tomar cuidado, em uma sociedade que segue as regras, com um fator: aonde essas regras todas estão nos levando.

Em muitos casos, a resposta parece ser “para lugar nenhum”.

Por favor, não vamos banalizar o nada.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo participação!